quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Dez

 

Quase dez meses e tudo está bem diferente. Temos dois dentinhos afiados, mais dois pelo caminho e um sorriso mais fácil, doce. Tão carinhosa, minha menina deita a cabeça e abraça a gente assim. Aos poucos ela passou a entender perfeitamente o que representa a palavra Não e acho ótimo. Que faça bom uso. A gente aprende o não antes mesmo de conseguir pronuncia-lo. Não é à toa!
Precisamos deixar explorar mas também estabelecer alguns limites pra essa criança aventureira. Elis quer se lançar numa corrida doida, parece comigo. Devagar filha, mais devagar! Calma! Chamou a mamãe no aperto de uma noite de febre e depois disso pôde começar a usar outras palavras também: batata, papai, pepeta. Apenas coisas da maior importância. Aventura de verdade é ver minha filha crescer. Que ano, gente. Que ano! Adivinhando a novidade que tumultua nossas noites, semana após semana, estamos avançando bem. Comendo bem, mamando, espichando e engordando, curiosa com sons, cores e tudo mais que cruze nosso caminho. Tudo nos conformes, pela graça do imenso investimento dessa família amorosa e ágil!
Elis está obviamente habituada com as máscaras e ver um de nós fazendo uso dela causa aquele alvoroço! Para ela, na sua inocência infantil, a máscara prenuncia o passeio. É uma condição, afinal. Acho triste, mas precisa ser assim. Chegamos vivos ao fim de mais um ano de pandemia, felizes e privilegiados por não termos perdido ninguém. E nem contraído o vírus, o que é surpreendente.
Meu trabalho, muito trabalho, amparado pelos fones de ouvido e pela avó de Elis, minha mãe, incansável. Quanto suporte. Não tem nome o que recebi em 2021. Manter a clínica online foi um estorvo pra mim, que gosto de gente, de estar com gente, mas também precisou ser assim e precisar ser assim me permitiu acompanhar cada dia de Elis, participar das sonecas e refeições. Então, noves fora, tá ótimo.
Como sempre, começaremos o novo ano desejosos de tempos melhores. Saúde, sorte. Em frente!

 

Hoje acordamos às cinco. "Acordamos" é modo de dizer. Para acordar, é preciso primeiro dormir. Ando revendo o conceito de sono. A menina não é de chorar e descobriu que pode batucar na cama em vez de chamar. Uma danada. Agora engatinha numa velocidade impressionante e, apressada, começou com essa mania de tentar andar, erguendo-se em tudo - o que nos põe vigilantes (mais, ainda mais). Se pai e mãe estão presentes, ela nunca decide com quem quer estar e vai de um pro outro. Assim que chega em um, vai pro outro. Mal dá tempo de fazer umas cócegas. É uma graça, uma fofura enorme, proporcional à dor lombar. Travados estamos, mas como dizer não a uma criança querendo explorar o mundo? Atenta aos sons, às luzes, puxa toda gente a reparar nas coisas. Nosso repertório musical vai crescendo exponencialmente, com derivações interessantes. Somos criativos, afinal.
Atualmente, entramos em defesa da Barata, que se diz que tem é porque tem, ué. Transformamos a barata numa pessoa modesta, que não tem só sete saias de filó, mas que é dona do brechó! E não tem um anel de formatura, tem um monte! Doutora em arquitetura! Rá, Rá, Rá-Rá, Rá, Rá: é doutora em arquitetura...
Pelo menos dessa vez fica possível alguma reparação.
A menina, a minha menina, não é de sorrisos fáceis. Exceto quando aproveito o estado de sono e dou uma bela fungada em seu sovaquinho! Finalmente escuto aquela gargalhada digna de corpinho balançando e olhinhos fechados. E depois solta um "rum", como quem diz "essa minha mãe...".
Quando muito descabelada (exausta, acabada), mando logo um "mãe maluca", terminando de bagunçar a juba. Ela adora. Fica surpresa, mas adora.
É trabalhoso, todos sabem. Mas também existe uma beleza tremenda em ver um bebê virando gente, saindo das necessidades para as preferências, aprendendo a se comunicar mesmo antes de falar. Apontando pra cama, pra água, fechando a cara, escorregando do colo pra pedir o chão. É realmente de uma beleza tremenda presenciar os quereres da minha menina surgindo. Muitos quereres é o que eu desejo para ela. Uma vida cheia deles. Não vejo a hora de ela criar condições de me dizer quais são.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

A casa

 

Enquanto desvio da noite atrás de Elis insone, resgato, sem saber exatamente o porquê, “A casa” de Vinicius de Moraes. Já tentei outras e por enquanto não funcionam. Por isso, canto incansavelmente seus versos até conseguir um ligeiro cochilo da pequena. Passamos mais tempo no embalo cantante do que no sono propriamente dito, mas o próprio processo garante algum descanso - no caso, o dela (ser mãe é isso). Não sei exatamente também como tornou-se possível construir um alento com uma casa que não tem nada de engraçada, nem o chão e nem as paredes, muito menos o penico — todos faltantes. Na verdade, eu sei. Faço uma voz bem baixinha, escolho um tom ameno e sigo quase sem pausa, pra que ela não tenha tempo de abrir um berreiro entre-versos. Na maioria das vezes o que acontece é que Elis se aconchega mais e mais a cada repetição, a casa vai ficando firme, como uma casa feita de tijolos (e não de palha ou madeira, veja bem). Quando não funciona, a segunda tática é reiniciar a música do meio de uma frase ou até de uma sílaba qualquer quando ela percebe a pausa, disfarçando minha tentativa de parar. De tanto amor ou exaustão, ela dorme.

Nas noites mais difíceis, Elis passeia sua mãozinha minúscula em busca de um pedaço de mim em que possa se agarrar, como quem sabe que eu poderia mesmo pensar em escapulir dali, dessa missão tão difícil que me dei. E penso, penso tanto que jamais poderia. Depois de embalar por horas um soninho tão mequetrefe, ela acorda restabelecida, olhões azuis me encarando, e eu, apesar de acabada, estou incrivelmente pronta para começar tudo de novo. Quem explica?

Acho que A casa (que não é) só pode ser a exata representação de uma mãe cansada. Ora sem chão, ora sem poder deitar na rede. Fazer pipi, desde que alguém te renda — é o que ninguém conta. E não se engane nem se assuste se lá da privada, ouvindo os choros de fora, você se apressar e já começar a balbuciar a primeira estrofe inteira. Não é fácil. Não é engraçado. Mas só rindo mesmo.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Breve

Elis chegará em breve e as pessoas me avisam insistentemente que será uma fase de abdicações e alegrias. Muitas abdicações. Às vezes, ao que parece, bordeadas pelas alegrias. Ou o contrário, ainda não entendi. Dizem que não dormirei, que meu tempo será o tempo dela, que nunca mais romance, nunca mais cinema, nunca mais drink no dancing… as pessoas não se cansam de me contar sobre seus cansaços. Eu tiro de letra, digo que nasci cansada e já me deixei cansar por cada coisa, que Elis pode me surpreender com uma energia nova. Foram muitas noites de sono perdidas em festas ruins para me queixar de ninar Elis até de manhã. Que vai valer a pena. Que criar gente é mesmo trabalhoso, mas que já me dediquei a muitas pessoas que mal conheci, emprestando tempo e corpo. Que tenho dado espaço para as ambivalências e elas me dão indícios do que não posso abrir mão para conseguir estar ali, inteira. Ou quase inteira, pelo menos. Acho que para as alegrias pensam não haver preparo. Ninguém está preparado para as alegrias.

Elis nascerá em muito breve, no ano em que não houve carnaval. Todos os dias o pessimismo com o caminhar das coisas toma a casa logo pela manhã, lendo as notícias, e nos esforçamos para retomar o fôlego. Uma pandemia atravessando a gestação, a distância cruel e necessária dos mais queridos. Sem abraços, a barriga cresceu dimensionada pelas telas, em chamadas de vídeo. O álbum de fotos tem um mesmo cenário, a sala de casa. É bom estar em casa, com saúde. São tempos em que estar em casa com saúde é um grande privilégio e eu não me esqueço disso. Ouvimos música de protesto em protesto. Você não acha que tá faltando protestar mais? Leio livros seguidos de livros, haja literatura pra me tirar daqui um pouco. E me ajudar a ficar um pouco mais. Caprichamos no café da manhã, tudo cheio de proteína pra fazer essa criança crescer, e no fim de semana aproveito de verdade o bolo com o doce de leite vindo lá das Minas Gerais que minha mãe inventou. Me culpo e me desculpo por tanto açúcar numa fatia só. Haja! Não dá pra passar por isso sem adoçar as coisas.

Eu espero para Elis uma vida doce. Que dessa maré em que ela nasce seja possível ver com mais clareza o que nessa vida importa. Que a gente consiga transmitir leveza mas também dar o peso que as coisas têm. Alternadamente, construindo recursos.

Com calma. Com alma.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Minha filha,

 

Sei que, ao menos por enquanto, você fica inteiramente submetida aos meus dias. E se passo por um deles que me seja difícil, você se mostra sensível à minha agitação, vivendo um alvoroço também aqui dentro. Não foram fáceis esses nossos últimos meses. O pesadelo de ontem, uma enxurrada tomando a cidade, o mar (la mer? la mère?) invadindo as ruas e fazendo tudo tudo desmoronar. Pela manhã, outro atropelamento, escancarando a nossa devastadora impotência diante da vida. Ainda assim, esses acontecimentos não superam os nossos últimos meses.

(Comprei um Valter Hugo Mãe para ver se finalmente nos acalmamos. Só agora percebo com mais clareza de que se trata, afinal, desse significante, mãe, se inscrevendo aos poucos.)

Haverá um dia em que os seus dias terão belezas e dificuldades só suas, e então você poderá escolher compartilhar conosco ou guardar para si os seus sentimentos. Por enquanto, ao menos por enquanto, você e suas piruetas me acompanham nas noites insones e por isso hoje te explico — o que se descobre logo que se é feito gente — que são demais os perigos dessa vida. Mas te explico e de antemão me desculpo por antecipar constatações que, sem dúvida, são duras. Sempre fui mestre em antecipar, achando ingenuamente que, assim, me livraria dos atropelos. Mas ninguém se livra dos atropelos.

Seu pai diz que teme que você não tenha a chance de passar pela experiência democrática que tivemos - não agora, quando tudo parece confuso, mas há pouco. Seu pai não chega a ser um pessimista, eu juro, mas ele diz essas coisas. E não me parece um pessimista porque, ao mesmo tempo em que diz essas coisas, ele provoca sutilezas capazes de encorajar a seguir e a acreditar que algumas conquistas são irrevogáveis. Ele não diria assim, é claro. Mas é o que eu acho que ele faz quando me faz caber num abraço. Eu toda. E isso ainda não ser tudo. Mesmo quando me falta, especialmente quando me falta, apareço inteira. Não sei explicar.

Pra muita coisa importante falta nome.

Essa carta é um aviso, Elis. Mas também é um lembrete das saídas possíveis para a dureza dos dias. Quando tudo parecer difícil é porque provavelmente é. Ainda assim, você não precisa estar só. Busque a companhia de pessoas de onde se tire alguma poesia. Algum amigo que te escute profundamente, sem nem ter o que dizer. Um dia de sol ao ar livre. Um tempo em silêncio. E no que mais você conseguir.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Dia de comida boa

Hoje é sexta-feira e depois de atender o dia inteiro, com os fones enfiados nos ouvidos, suportando as más conexões para permitir outras, sei que vai chegar a hora de me alongar no chão da sala, de tomar um banho morno, ligar a vitrola e abrir um vinho com meu bem. Em geral é cerveja, mas hoje será um Merlot, que tomara que esteja bom. Ouviremos Milton Nascimento, Gil e Belchior (nosso acervo não é dos maiores, é verdade, mas nos basta). Meu bem, nas sextas-feiras, prepara comida boa. É assim que chamamos a comida da sexta, para que se marque a diferença entre ela e o cardápio semiequilibrado dos outros dias. É de comida boa em comida boa que fazemos a nossa escansão, a pausa de semanas ora estressantes, ora no embalo, sem pensar demais. Amanhã é dia de café com calma. É assim que chamamos as manhãs de sábado.
Tenho evitado os noticiários porque entendo que tão cedo não haverá boa notícia. Ao contrário, a cada dia surge uma pior do que a outra. Aquele senhor que chamam presidente, aff. Não aguento. Só me refiro a ele usando os nomes que Riobaldo usa para o coisa-ruim: Cramulhão, Galhardo, Sujo, Tisnado, Coxo, Temba, Azarape. O cão!
É, meu amigo, Deus é paciência.
Espero que seus dias tenham alguma graça, mesmo pequenina, mas alguma. Que a você chegue algum afeto, como este, nessa cartinha apressada, escrita no tempinho em que descanso as orelhas.
Fique bem. Tá tudo bem em pestanejar — desde que não se demore ali.
Um abraço forte (daquele tipo pré-pandêmico).

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Paz sem Voz



Eu sei que você se aborrece com as minhas demoras, mas eu tenho me permitido algumas mesmo não sendo fácil para mim me ausentar. Sempre me lembro dos versos de García Márquez, em Memórias de minhas putas tristes, quando descobre que “a minha obsessão de que cada coisa estivesse no seu lugar, cada assunto no seu tempo, cada palavra no seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente ordenada mas, pelo contrário, um sistema completo de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, mas como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir a minha mesquinhez, que passo por prudente por ser pessimista, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que não se saiba que pouco me importa o tempo alheio”. É interessante, porque ainda ontem eu estudava Didier-Weill quando diz que a música tem essa função de nos tornar Sujeito cantante. Ele brinca com as palavras ao dizer cantante, porque é falante que o sujeito é. A obra de arte, já dizia Freud, não é lida por nós (vista, ouvida…) mas sim nos lê, vê e ouve. Está aí a identificação com o trecho do Gabito.

São delongas para me desculpar pela demora, mas também para dizer que precisei dela e impus que você esperasse. Não por maldade, porque não pensava exatamente em você e em fazê-la esperar por puro capricho, é claro. Gosto de você. E sei que você suporta porque entende essa espera. Não que precise, mas vou também dizer que não sou exatamente de paz, como você diz. Às vezes sou. Mas hoje, depois de rever os vídeos do manifesto antifascista que começa a nos dar notícias e esperança, eu voltei a sentir esse fervor no peito. Paz sem voz é conivência, Carla. Não podemos ser coniventes.
Longe de embarcar em uma de achar que dá pra mudar o mundo, propus (a mim mesma) que marcasse posição sempre que achasse importante não parecer conivente. Digo não, mesmo sabendo ser pouco dizer não. Atormento os meus vizinhos racistas, os que flertam com o autoritarismo. Bato panelas para que saibam que não estamos juntos. Não dá pra ficar confinada, e em paz, sem voz. Quase me envergonho de fazer tão pouco. Da minha posição privilegiada, isso não é nada, eu sei. Eu sei mesmo. Não precisa me dizer. Levo a vida e o trabalho com a máxima coerência que a minha neurose me permite. Mas, Carla, é na miséria do meu pequeno mundo que posso ver algum avanço e ter ânimo para seguir, atenta e forte.

Não temos (mais) tempo de temer a morte.
Espero que você esteja bem.
Um beijo,
Nanda