quarta-feira, 12 de janeiro de 2022
Dez
sexta-feira, 23 de abril de 2021
A casa
Enquanto desvio da noite atrás de Elis insone, resgato, sem saber exatamente o porquê, “A casa” de Vinicius de Moraes. Já tentei outras e por enquanto não funcionam. Por isso, canto incansavelmente seus versos até conseguir um ligeiro cochilo da pequena. Passamos mais tempo no embalo cantante do que no sono propriamente dito, mas o próprio processo garante algum descanso - no caso, o dela (ser mãe é isso). Não sei exatamente também como tornou-se possível construir um alento com uma casa que não tem nada de engraçada, nem o chão e nem as paredes, muito menos o penico — todos faltantes. Na verdade, eu sei. Faço uma voz bem baixinha, escolho um tom ameno e sigo quase sem pausa, pra que ela não tenha tempo de abrir um berreiro entre-versos. Na maioria das vezes o que acontece é que Elis se aconchega mais e mais a cada repetição, a casa vai ficando firme, como uma casa feita de tijolos (e não de palha ou madeira, veja bem). Quando não funciona, a segunda tática é reiniciar a música do meio de uma frase ou até de uma sílaba qualquer quando ela percebe a pausa, disfarçando minha tentativa de parar. De tanto amor ou exaustão, ela dorme.
Nas noites mais difíceis, Elis passeia sua mãozinha minúscula em busca de um pedaço de mim em que possa se agarrar, como quem sabe que eu poderia mesmo pensar em escapulir dali, dessa missão tão difícil que me dei. E penso, penso tanto que jamais poderia. Depois de embalar por horas um soninho tão mequetrefe, ela acorda restabelecida, olhões azuis me encarando, e eu, apesar de acabada, estou incrivelmente pronta para começar tudo de novo. Quem explica?
Acho que A casa (que não é) só pode ser a exata representação de uma mãe cansada. Ora sem chão, ora sem poder deitar na rede. Fazer pipi, desde que alguém te renda — é o que ninguém conta. E não se engane nem se assuste se lá da privada, ouvindo os choros de fora, você se apressar e já começar a balbuciar a primeira estrofe inteira. Não é fácil. Não é engraçado. Mas só rindo mesmo.
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021
Breve
Elis chegará em breve e as pessoas me avisam insistentemente que será uma fase de abdicações e alegrias. Muitas abdicações. Às vezes, ao que parece, bordeadas pelas alegrias. Ou o contrário, ainda não entendi. Dizem que não dormirei, que meu tempo será o tempo dela, que nunca mais romance, nunca mais cinema, nunca mais drink no dancing… as pessoas não se cansam de me contar sobre seus cansaços. Eu tiro de letra, digo que nasci cansada e já me deixei cansar por cada coisa, que Elis pode me surpreender com uma energia nova. Foram muitas noites de sono perdidas em festas ruins para me queixar de ninar Elis até de manhã. Que vai valer a pena. Que criar gente é mesmo trabalhoso, mas que já me dediquei a muitas pessoas que mal conheci, emprestando tempo e corpo. Que tenho dado espaço para as ambivalências e elas me dão indícios do que não posso abrir mão para conseguir estar ali, inteira. Ou quase inteira, pelo menos. Acho que para as alegrias pensam não haver preparo. Ninguém está preparado para as alegrias.
Elis nascerá em muito breve, no ano em que não houve carnaval. Todos os dias o pessimismo com o caminhar das coisas toma a casa logo pela manhã, lendo as notícias, e nos esforçamos para retomar o fôlego. Uma pandemia atravessando a gestação, a distância cruel e necessária dos mais queridos. Sem abraços, a barriga cresceu dimensionada pelas telas, em chamadas de vídeo. O álbum de fotos tem um mesmo cenário, a sala de casa. É bom estar em casa, com saúde. São tempos em que estar em casa com saúde é um grande privilégio e eu não me esqueço disso. Ouvimos música de protesto em protesto. Você não acha que tá faltando protestar mais? Leio livros seguidos de livros, haja literatura pra me tirar daqui um pouco. E me ajudar a ficar um pouco mais. Caprichamos no café da manhã, tudo cheio de proteína pra fazer essa criança crescer, e no fim de semana aproveito de verdade o bolo com o doce de leite vindo lá das Minas Gerais que minha mãe inventou. Me culpo e me desculpo por tanto açúcar numa fatia só. Haja! Não dá pra passar por isso sem adoçar as coisas.
Eu espero para Elis uma vida doce. Que dessa maré em que ela nasce seja possível ver com mais clareza o que nessa vida importa. Que a gente consiga transmitir leveza mas também dar o peso que as coisas têm. Alternadamente, construindo recursos.
Com calma. Com alma.
segunda-feira, 16 de novembro de 2020
Minha filha,
Sei que, ao menos por enquanto, você fica inteiramente submetida aos meus dias. E se passo por um deles que me seja difícil, você se mostra sensível à minha agitação, vivendo um alvoroço também aqui dentro. Não foram fáceis esses nossos últimos meses. O pesadelo de ontem, uma enxurrada tomando a cidade, o mar (la mer? la mère?) invadindo as ruas e fazendo tudo tudo desmoronar. Pela manhã, outro atropelamento, escancarando a nossa devastadora impotência diante da vida. Ainda assim, esses acontecimentos não superam os nossos últimos meses.
(Comprei um Valter Hugo Mãe para ver se finalmente nos acalmamos. Só agora percebo com mais clareza de que se trata, afinal, desse significante, mãe, se inscrevendo aos poucos.)
Haverá um dia em que os seus dias terão belezas e dificuldades só suas, e então você poderá escolher compartilhar conosco ou guardar para si os seus sentimentos. Por enquanto, ao menos por enquanto, você e suas piruetas me acompanham nas noites insones e por isso hoje te explico — o que se descobre logo que se é feito gente — que são demais os perigos dessa vida. Mas te explico e de antemão me desculpo por antecipar constatações que, sem dúvida, são duras. Sempre fui mestre em antecipar, achando ingenuamente que, assim, me livraria dos atropelos. Mas ninguém se livra dos atropelos.
Seu pai diz que teme que você não tenha a chance de passar pela experiência democrática que tivemos - não agora, quando tudo parece confuso, mas há pouco. Seu pai não chega a ser um pessimista, eu juro, mas ele diz essas coisas. E não me parece um pessimista porque, ao mesmo tempo em que diz essas coisas, ele provoca sutilezas capazes de encorajar a seguir e a acreditar que algumas conquistas são irrevogáveis. Ele não diria assim, é claro. Mas é o que eu acho que ele faz quando me faz caber num abraço. Eu toda. E isso ainda não ser tudo. Mesmo quando me falta, especialmente quando me falta, apareço inteira. Não sei explicar.
Pra muita coisa importante falta nome.
Essa carta é um aviso, Elis. Mas também é um lembrete das saídas possíveis para a dureza dos dias. Quando tudo parecer difícil é porque provavelmente é. Ainda assim, você não precisa estar só. Busque a companhia de pessoas de onde se tire alguma poesia. Algum amigo que te escute profundamente, sem nem ter o que dizer. Um dia de sol ao ar livre. Um tempo em silêncio. E no que mais você conseguir.